sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

“Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer sem empecilho, mesmo que os nascituros formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam mais o que fazer com os sem-teto, os sem-terra, os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concilio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim, a vida é maior, o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia, e por ser um único dia em sua vida, um deserdado daqueles sai de seu buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá, homem, repara se já viu o céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.”

- Adélia Prado em seu livro ‘Filandras


Logo eu que nunca gostei muito do Natal por causa do capitalismo que está embutido em todas essas cores, em toda a ‘mágica’; logo eu que não aprecio muito o Natal devido sua origem estar estritamente  ligada às festas pagãs romanas e gregas; logo eu que por esses e outros motivos ignorava o Natal, tenho me sentido particularmente feliz estes dias... Porque não importa o que originou o Natal; importa o significado que eu ofereço a ele; importa o que eu faço com ele e o que eu permito que ele faça comigo. Isso sim importa.

Chego ao fim de 2011 com o sentimento de enorme e profunda gratidão fazendo morada em mim. 2011 não foi nem de longe o melhor ano de minha efêmera existência, ainda assim me sinto grata por tê-lo vivenciado; estes dias me fizeram acreditar na frase ‘O que é verdadeiro permanece’. Este ano, só os verdadeiros permaneceram: os verdadeiros amigos – ainda que separados por uns poucos quilômetros; os verdadeiros sonhos/planos que não enfraqueceram diante da impossibilidade de realizarem-se brevemente, ao contrário, fortaleceram-se com as dificuldades; a demora aguçou em mim o desejo de torná-los reais; os sentimentos verdadeiros estão presentes agora, a esperança está ao meu lado, logo a esperança que há tempos não dava as caras! E o melhor de tudo: minha família continua unida; juntos, nós chegaremos lá e ,se, não ‘chegarmos lá’, com certeza, chegaremos a um lugar muito melhor, e só a caminhada faz tudo valer o esforço. Por isso tudo sou grata, e por mais razões sobre as quais não escrevo porque a falta de inspiração e jeito com as palavras não permitem.

Então, obrigado a todos que estiveram presente, seja pessoalmente, seja nas redes sociais, seja por telefone, sms, e-mail, ou de qualquer outra maneira. Muitíssimo obrigado aos amigos que só por existirem, me fazem feliz e me tornam melhor a cada instante. Obrigado Pai, Mãe, Irmão por me amarem, por estarmos juntos, por todo aprendizado, por acreditarem em mim e por me ajudarem a deixar de ser tão excêntrica. E, por fim, mas não menos importante, obrigado Senhor, por me amar e por nos sustentar todos os dias, obrigado por chegar com providência, por não nos abandonar, e por sussurrar continuamente: ‘Estou contigo’.

Obrigado, obrigado, obrigado e muito obrigado 2011.

Obrigado a todos; como diz Pe. Fábio de Melo ‘Porque a generosidade é um jeito elegante de ser amigo.’


Abraços, e até 2012!       

Noemi B. Fernandes

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O que nos leva a escolher uma vida morna? A resposta está estampada na distância e na frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos bom dia, quase que sussurrados.
- Luís Fernando Veríssimo

“Quando penso que escapei de minha timidez, há um gesto inesperado que me faz corar e regressar, rendido, para a ausência de lugar. O corpo não é um esconderijo seguro.”
- Fabrício Carpinejar

"Tem coisa que eu deixo passar. Não vale a pena. Tem gente que não vale a dor de cabeça. Tem coisa que não vale uma gastrite nervosa. Entende isso? Não vale. Não vale dor alguma, sacrifício nenhum." 

Cazuza
"Ou eu agrado ou incomodo as pessoas com meu jeito. É que meu jeito é bem diferente. Se eu gosto fica carimbado na minha cara. E se eu não gosto fica estampado no meu rosto e na minha cara de nojinho. Não sei forçar uma cara boa."

Clarissa Corrêa
Que em 2012 as pessoas cuidem mais de suas vidas, guardem a indelicadeza no bolso, leiam mais, amem mais e escrevam corretamente. 

- Clarissa Corrêa

Garotas são loucas, se fossem vendidas em frascos, viria rotulado: contém 1 drama. 

- Gabito Nunes
Mas daí você vai sofrer de novo, dizem os medrosos. E o bom da vida é o que? É sentir. Des-pe-da-çar. Refazer. Quando tudo se rasga, quem costura sou eu. Dou conta. Se amanhã eu acordar e resolver amar pra caralho, eu amo. Ele, você, outro. Ponto. Que venha a mim todo o amor que houver nessa vida, o tempo inteiro. Meu coração vagabundo quer guardar o mundo em mim. 

- Jaya Magalhães

Meninos de costas




Não me sonhe, por favor. Pessoas que acham que podem me amar me ofendem. É sempre muito pouco o que elas podem e é sempre muito diferente do que deveria ser amor o que elas oferecem.

Eu custo a suportar a banalidade do meu ser. Eu custo a aceitar uma relação como a que qualquer um poderia ter. Eu seria mais feliz se eu não me achasse melhor do que a minha vizinha. Mas eu sou infinitamente melhor que ela. Eu e minhas crises de ansiedade somos seres solitários, arrogantes e multiplicados por megalomanias. São mil vezes cem anos de análise e nada. Eu continuo me achando melhor que o amor igual e idiota que se oferece por ai. Melhor do que os casais e seus dilemas de festas de finais de ano e seus sonhos de vestidos brancos e seus cachorros e sacadas de predinhos neoclássicos e planos médicos familiares. Chato, chato, chato.

É sempre nojento quando aparece alguém que quer tentar me amar. Sempre daquele jeito burocraticamente aos poucos e equilibrado e respeitado pela vida social e empresarial e natural e dentro da rotina dos humanos normais do planeta que precisam ir aos poucos porque a vida em sociedade empresarial e natural e tudo isso. E então eu tenho prazer de tornar a vida de todo mundo que se aproxima de mim, achando que pode me amar igual meu vizinho ama a minha vizinha, um inferno. É que, por completa infelicidade, eu sempre acho a minha grama infinitamente mais verde.

O certo, se é que existe o certo, era eu gostar de assistir ao ato da conquista sentada confortavelmente em uma soberba cadeira de rainha. Homens adoram mulheres que se permitem galantear e sorrir entregues para seus lampejos de semi genialidade. O problema é que eu quase sempre sou muito mais engraçada e rápida e semi genial que eles. E estou tão perto de virar um homem que tenho preferido a minha masturbação a ter problemas para conviver com outro ser humano que, por experiência própria, só vai encher a porra do meu saco.

Não sei o nome de milhares de capitais de milhares de estados. A minha vida inteira tirei 6 pra passar de ano. Leio pouco. Tenho fobia de sair de São Paulo. Sou meio flácida e corcunda. Ainda assim, quando um bom moço me oferece amor, me sinto ofendida. Porque é pouco e porque se parece com tudo a minha volta e porque, definitivamente, não tenho estômago pra ser minha vizinha.

Minha vizinha, que é absurdamente igual a todo mundo, é casada com um homem que poderia se passar por qualquer ser humano da terra. Eles vivem uma vida muito parecida com todas as outras. Uma parede me separa dessa realidade insuportável e eu os odeio por isso.

Enquanto isso, gosto bastante de rapazes que, numa festa, conversam de costas pra mim. Pessoas que pouco se importam com a minha existência me libertam de ser especial. Ou, melhor, de não ser esse pequeno e medíocre “especial” que é o máximo de especial que as pessoas podem sentir e dar e ter. Resumindo: me libertam de não ser especial

Se não me percebem não preciso entrar em contato com a dor suprema que é ser percebida de forma tediosa ou menor ou superficial ou igual todos se percebem e se têm e, por fim e rapidamente, não se suportam mais.
Sou imatura, egocêntrica e debilmente iludida por uma auto-estima analgésica de efeito rebote. E dane-se. Um dia o meu amor verdadeiro chegará e será diferente de tudo isso e nós vamos chorar de emoção por ter valido a pena não sangrar até a morte nos insistentes e rotineiros momentos de angústia e nada e vazio e solidão e inconformismo.

- Tati

-'tô sempre escrevendo cartas que nunca vou mandar, pra amores secretos, revistas semanais e deputados federais...(8)' - E.H.



Em algum momento você tomou coragem, sentou e escreveu. Estava inspirado, colocou no papel tudo que não tem coragem de falar pessoalmente. Bebeu, fumou, ficou horas na frente do teclado, chorou pa'caralho quando releu, achou foda e... não mandou. Altas declarações de amor, confissões, pedidos de perdão e momentos de coragem ou fúria afetiva estão nas gavetas e nas pastas dos pc’s, ou em rascunhos de algum caderno.


O BILHETE

Escrevi e reescrevi 
mil vezes busquei palavras, 
acrescentei e cortei coisas 
até o lixo encher –se de papel.

Na declaração de amor 
nada podia faltar
ou sobrar. 
As palavras seriam música 
E passariam inteira a paixão.

Escrevi mil vezes o bilhete de amor. 
E ele virou poema, 
provocou delírios,
arrepiou meus cabelos
e ferveu o meu corpo todo.
  
Acho que ninguém escreveu ainda
Tão belo poema – bilhete de amor.
Só que não tive coragem de enviá–lo.                                                             

- Elias José

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Eu soube, desde a primeira vez que te vi, que corria o risco de te querer. Talvez pela adrenalina de tudo aquilo ou só fantasia ou só desejo bobo, ânsia de provar que. Eu quero. Eu posso. Eu consigo. Ladainha, besteira pura. O fato que eu sempre soube que corria o risco de te querer e quis, mas deixei guardado, lá no fundo do fundo do fundinho da memória, pra tentar esquecer. Inventei uma admiração tola, um querer bem de amigo, umas conversas despreocupadas e forcei a me convencer que bastava, que era isso e pronto. Nada mais. Coleguismo e só. Doce engano. A armadura se desfez nas primeiras palavras daquela manhã de feriado comprido, debaixo de chuva e frio. Você montou frases em voz de veludo, ensaiou arranjos perfeitos e foi me desmontando todinha, arruinando a esperança que eu tinha de não sentir nada, nadinha. Um mínimo de sentimento. Mas eu me vi feliz, sabe? Sabia que estava ferrada, que era tarde pra se chegar em casa, tão cedo raiava o dia, que tava lindo de tão feio. Mas não dei bola, eu queria aquilo, constatei. Eu queria MUITO aquilo, aquele momento, aquelas palavras, aquela certeza, aquele sorriso, aquele abraço molhado, aquele conforto. Eu me sentia bem. Como podia ser errado se eu estava feliz? Como podia? Não era, repetia pra mim mesma. Não era.

Uma vez me falaram, tamanho era meu silêncio, “ainda existem portos seguros, MF” e eu não acreditava. Ficava na minha redoma, ruminando o que ardia aqui por dentro e me virava sozinha, como podia, como agüentava fingir que podia. Daí veio você e eu senti segurança – como já deixei escapar, tão nas primeiras vezes – e consegui acreditar que existiam sim portos seguros, eu que só não tinha encontrado o meu porto ainda. E aí está você, que me aninha nos braços como se eles tivessem sido moldados só me abrigar. Eu me escondo no teu abraço e esqueço do mundo e acredito que sou capaz de ir mais longe, que você é capaz de me levar mais longe, de me fazer melhor e feliz e um pouco mais feliz. É daquelas felicidades que dá vontade de chorar, confesso. Uma lágrima boba que cai, como se quisesse dizer “que bom que você está aqui. Eu te esperei desde sempre”.
♫ Tudo que cala fala mais alto ao coração.


Você me olhava com os olhos em brasa e o coração gritando no peito. Calma moço, foi o que eu quis te dizer, mas a voz sumiu no meio das palavras que se acumulavam na garganta. Virei meus olhos pra longe numa tentativa de não chover. Eu não queria que você me visse tempestiva de novo, eu não queria desmoronar e acabar te derrubando, porque você não merece, não percebe? No fundo eu sou só uma boba ciumenta, daquelas que queria ser tudo aquilo que te faz bem só pra te ter perto das melhores formas. Tenho tentado escapar da rotina que nos envolve, mas tem vezes que me rendo à mim mesma, pois nem sempre eu sou forte. Dá vontade de jogar tudo pro alto e deixar chover o que tiver que chover, falar o que sentir vontade de falar e sumir, só por uns diazinhos, pra ver o quanto você sentiria minha falta. Eu sinto tua falta todos os dias moço, mesmo estando lado a lado. Acho que sinto falta da gente, de quando tudo era novidade, quando tudo era proibido, quando qualquer olhar era segredo. Saudade de quando fomos dois sem ninguém poder saber. Saudade dos ciúmes disfarçados, dos telefonemas noturnos, daqueles infindáveis “quero te ver”, mesmo depois de ter acabado de dar um tchau cheio de profissionalismo. Então eu quis muito te pedir calma, quis muito pedir para que calasses as tuas falas e me ouvisse. Ou tentasse ouvir tudo aquilo que eu não digo, tentasse interpretar todo o meu silencio que grita mais alto do que a voz seria capaz. Eu quis pegar teu rosto entre as mãos e mergulhar nos teus olhos cor de tubaína e dizer que os defeitos são só poeira perto de todas as qualidades. Quis dizer que não me importo e quis te contar do sonho que tive, acordando com aquela certeza de quanto eu te quis e do quanto eu te quero e do quanto eu ainda posso te querer. É muito, garoto. É mais do que eu ensaio dizer – e não digo.

Eu te amo calado, 
como quem ouve uma sinfonia de silêncios(...)
tem certas coisas que eu não sei dizer.♪

Não permita que a gente se perca no marasmo da rotina, no convívio de todo dia. Não deixe que minha cara amassada te impeça de brincar, de sorrir e de incomodar, ainda que isso me arranque uma boa dose de mau humor antes da risada histérica, da gargalhada boa. Me faz sentir dor na barriga de tanto rir, brinque de me sufocar, de guerra de travesseiro, me descabele e me aninhe com força. Me prenda nos teus braços e, por mais que eu lute pra sair, não me deixe ir. Segura. Aperta. Queira perto. Queira mais perto. Queira dentro. Me esconde do mundo no teu peito, sussurra palavras no meu cabelo que deixem meu ego no céu, ainda que por segundos, para que eu suporte o mundo, a rotina, a cobrança da vida. Faça-me acreditar que sou tão boa quanto tu diz que sou, que eu sou capaz de abraçar o mundo e ser gigante nesse mar de gente. E quando eu tiver triste, volta a bagunçar meus cabelos, volta a brincar de me irritar até que a irritação vá embora pela janela e a gente fique a se amar, esperando a preguiça impregnar nas madrugadas de domingo. E recomeçamos.


Rio de Janeiro, hoje é 23 do 3.
 
Como vão as coisas?
De mês em mês eu me sento pra escrever pra você. Eu reformei a casa e você não soube disso, nem das outras coisas. Sabe, eu tive um filho. Faz tempo que eu me perdi de você.
Guardo pra te dar as cartas que eu não mando. Conto por contar, eu deixo em algum canto.
Eu vi alguns amigos tropeçando pela vida; andei por tantas ruas, são estórias esquecidas que um dia eu quis contar pra você. Eu fico imaginando sua casa e seus amigos; com quem você se deita, quem te dá abrigo. Eu me lembro que eu já contei com você.
Guardo pra te dar as cartas que eu não mando. Conto por contar, eu deixo em algum canto.
E as pilhas de envelopes já não cabem nos armários; vão tomando meu espaço, fazem montes pela sala. E hoje são a minha cama, minha mesa, meus lençóis. E eu me visto de saudades do que já não somos nós.


- As cartas que eu não mando - Leoni

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011


“Mas seus olhos não mentem o cansaço da espera e a tristeza de estar solta, e você fica feia. É ter a sensação de que ninguém te olha, pelo menos não como você gostaria de ser olhada. Estar sozinha é estar solta e, no entanto, é estar amarrada ao chão porque nada te faz flutuar, sonhar, divagar. Estar sozinho, ou estar sozinha, pode acontecer com qualquer um. E você torce para que aconteça com a sua melhor amiga, ou com aquele homem que você gostaria de experimentar como uma pílula para a sua solidão. Estar sozinha é não suportar ouvir a palavra solidão porque ela faz sentido. E o sentido dela dói demais. Estar sozinho é ter uma risada nervosa, de quem segura um grito e um choro enquanto ri. Um riso falso para se convencer de que é possível ficar sozinho sem ficar deprimido […] É conferir a caixa de e-mails com uma freqüência que beira a compulsão. É chorar do nada. É acordar do nada.”


- Tati Bernardi
Essa ferida meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
- Carlos Drummond de Andrade
Não gosto de gente que é feliz o tempo todo, nem de gente que vive de mal com a vida. Não gosto de quem finge autenticidade, nem de quem afirma nunca mentir. Não gosto de pássaros presos em gaiolas e de quem acha que tomar sorvete no frio pode dar gripe. Não gosto de gente burra, de gente que se faz de burra porque assim é mais fácil se incluir, nem de gente que se faz de inteligente. Não gosto de gente que finge. Não gosto de toalha molhada em cima da cama. Não gosto de testa franzida, de sorriso travado, de braços cruzados. Não gosto de quem se anula totalmente em busca da maior semelhança possível com outra pessoa. Não gosto de casais grudentos (ou grudados), e de pessoas que afirmam não conseguir viver sem outra. Não gosto de machismo, de gente que afirma não ser machista mas que ensina a filha a lavar louça enquanto o filho sai para jogar bola. Não gosto de gente que não gosto se metendo na minha vida. Não gosto das namoradas dos meus irmãos, e provavelmente nunca vá gostar. Não gosto de gritos, de mania de limpeza ou batidas de porta. Não gosto de domingos, de ressacas ou de finais de ano. Não gosto mesmo. 


Bianca Landi
“Cometa bobagens. Não pense demais porque o pensamento já mudou assim que se pensou. O que acontece normalmente, encaixado, sem arestas, não é lembrado. Ninguém lembra do que foi normal. Lembramos do porre, do fora, do desaforo, dos enganos, das cenas patéticas em que nos declaramos em público. Cometa bobagens. Dispute uma corrida com o silêncio. Não há anjo a salvar os ouvidos, não há semideus a cerrar a boca para que o seu futuro do passado não seja ressentimento. Demita o guarda-chuva, desafie a timidez, converse mais do que o permitido, coma melancia e vá tomar banho de rio. Mexa as chaves no bolso para despertar uma porta. Cometa bobagens. Não compre manual para criar os filhos, para prender o gozo, para despistar os fantasmas. Não existe manual que ensine a cometer bobagens. Não seja sério; a seriedade é duvidosa; seja alegre; a alegria é interrogativa. Quem ri não devolve o ar que respira. Não atravesse o corpo na faixa de segurança. Grite para o vizinho que você não suporta mais não ser incomodado. Use roupas com alguma lembrança. Use a memória das roupas mais do que as próprias roupas. Desista da agenda, dos papéis amarelos, de qualquer informação que não seja um bilhete de trem. Procure falar o que não vem à cabeça. Cantarolar uma música ainda sem letra. Deixe varrerem seus pés, case sem namorar, namore sem casar. Seja imprudente porque, quando se anda em linha reta, não há histórias para contar. Leve uma árvore para passear. Chore nos filmes babacas, durma nos filmes sérios. Não espere as segundas intenções para chegar às primeiras. Não diga “eu sei, eu sei”, quando nem ouviu direito. Almoce sozinho para sentir saudades do que não foi servido em sua vida. Ligue sem motivo para o amigo, leia o livro sem procurar coerência, ame sem pedir contrato, esqueça de ser o que os outros esperam para ser os outros em você. Transforme o sapato em um barco, ponha-o na água com a sua foto dentro. Não arrume a casa na segunda-feira. Não sofra com o fim do domingo. Alterne a respiração com um beijo. Volte tarde. Dispense o casaco para se gripar. Solte palavrão para valorizar depois cada palavra de afeto. Complique o que é muito simples. Conte uma piada sem rir antes. Não chore para chantagear. Cometa bobagens. Ninguém lembra do que foi normal. Que as suas lembranças não sejam o que ficou por dizer. É preferível a coragem da mentira à covardia da verdade.”

- Carpinejar